segunda-feira, setembro 23, 2013

À memória de Ramos Rosa


Amélia Vieira
Poeta

Hoje morreu um Poeta. 
Ramos Rosa foi talvez o últimos dos grandes Poetas, que teve uma vida de Poeta, que foi Poeta na sua consciência mais profunda e continuada. 
Um Poeta, geralmente não é funcionário público, ou mantém outras actividades paralelas, como se a Poesia fosse um entretenimento de carácter ocupacional (idem, esses fastidiosas actividades de diversão cultural).
Ramos Rosa foi um trabalhador constante da palavra, um lavrador do verbo poético que durante toda uma vida não teve mais que o elaborar, inventar e refazê-lo. 
É desgastante averiguar o quanto uma sociedade inteira paga a todos, e as estes, os deixa continuamente de fora. Este país não tem merecido os seus melhores Poetas. Por isso, têm que andar a editar livros, que sendo supostamente de poesia, são uma enorme e sub-reptícia vingança contra ela. Mas, a Poesia, aguenta tudo. Porque é tão rara como os seus fazedores.

sexta-feira, agosto 02, 2013

José Afonso nasceu há 84 anos




Para José Afonso | Poema de António Ramos Rosa

O canto que se erguia
na tua voz de vento
era de sangue e oiro
e um astro insubmisso
que era menino e homem
fulgurava nas águas
entre fogos silvestres.
Cantavas para todos
os acordes da terra,
os obscuros gritos
e os delírios e as fúrias
de uma revolta justa
contra eternos vampiros.
Que imensa a aventura
da luz por entre as sombras!
A vida convertia-se
num rio incandescente
e num prodígio branco
o canto sobre os barcos!
E o desejo tão fundo
centrava-se num ponto
em que atingia o uno
e a claridade intacta.
O canto era carícia
para uma ferida extrema
que era de todos nós
na angústia insustentável.
Mas ressurgia dela
a mais fina energia
ressuscitando o ser
em plenitude de água
e de um fogo amoroso.
É já manhã cantor
e o teu canto não cessa
onde não há a morte
e o coração começa

domingo, junho 16, 2013

Memo contra a função pública. Direito e sem Lei. E outros dislates.


Anabela Melão
Jurista


O memorando de entendimento entregue pelo Governo à troika, na sequência da sétima avaliação, divulgado ontem pelo FMI, aponta para uma redução de despesa no valor de 1411 M€, com nova redução de 3289 M€ em 2014. O enfoque é, claramente, a despesa versus os cortes da função pública, em termos de funcionários e de salários. O valor a cortar na factura com a FP representa 2172 M entre 2013-2014, o que equivale a 46,2% do total de 4700 M€.
Manuela Ferreira Leite, que o PSD sempre teve como guru em matéria económica, é contra estas medidas. Diz que a falta de pagamento dos subsídios é "uma agressão aos funcionários públicos", que não consegue "entender esta confusão porque não tem nenhum efeito do ponto de vista orçamental", que "algo não está a bater certo", que "O motivo porque estamos em recessão tem a ver com o tipo de medidas tomadas. Todos concordam que passou a fase da emergência, que acabou por ser pior do que se previa e agora o governo anunciou que entramos na fase do crescimento", e que o compromisso do Governo de cortar 4700 M€ na despesa até 2014 e não até 2015 "não é exequível", porque "Não há forma de pagar o que se deve sem criar riqueza. O FMI como credor deve pensar como e quando podemos pagar esta quantia". Os novos gurus do Governo parecem adoptar uma linha completamente divergente e, para quem conhece os métodos e o pensamento de MFL, só resta perceber que a "velha escola" afinal é mais social e mais democrata que esta "nova escola" - se é que se pode chamar a esta gente "escola"!
O que é certo é que, lentamente, inexoravelmente, o "estado de excepção" vai-se instalando. Passos Coelho assumiu o "compromisso" de "alterar a lei" da greve para que os sindicatos do setor da Educação passem a ser obrigados a providenciar serviços mínimos em caso de greve, caso os tribunais não o reconheçam, na sentença que responderá ao recurso que o Governo apresentou da decisão da comissão arbitral que isentou os sindicatos desta obrigação. quando a lei não convém, faz-se outra "conveniente"! o Estado de Direito deixa de se sujeitar ao primado da Lei e é a lei que dita a excepção ao Estado de Direito! O que o PM acaba de dizer no Parlamento é: Je souis la Loi, Je souis l'Etat; l'Etat c'est moi! E agora que Luis XIV falou, que dirá o cardeal de Richelieu/Boliqueime, pergunta d'Artagnan. E Athos, Porthos e Aramis respondem: "Ficará calado, que, quando fala, ou sai bojarda ou entra bolo-rei!"

quarta-feira, junho 05, 2013

DOIS ANOS DE (des)APONTAMENTO!, por Anabela Melão


Anabela Melão
Jurista


Efeméride esta tristonha! Passados dois anos depois da tomada do poder, via urnas, tudo democraticamente legitimado, feito O Salvador, Passos Coelho chegou. O protesto, que a memória vai falhando a muitos, foi a austeridade excessiva do PEC IV.
Portugueses e Governo, na histórica demanda do sonho: Um Governo, Uma Maioria, Um Presidente, noivados e casados, e com o divórcio à espreita, é tempo de avaliação.
Passos Coelho, um pouco como um santo casamenteiro, prometeu tudo a todos e falhou em tudo, com todos.
Para os primeiros três meses do ano: revisão em baixa em 0,1 pontos. O PIB caiu 4%, em termos homólogos, ao que dizem por causa da redução da procura interna. A Comissão Europeia esperava uma queda da economia de apenas 0,1% no primeiro trimestre de 2013, face ao último trimestre de 2012, e de 3,7% face ao período homólogo.
Agravamento da taxa de desemprego, apontada para cerca de 13% acabou em quase 19%.
250 000 novos emigrantes, entre juniores e seniores altamente qualificados.
Portugal fechou o ano de 2010 com um crescimento económico de 1,9% do Produto Interno Bruto, apontando-se os gastos excessivos da parte do setor público como a causa principal. Em 2012 a recessão atingiu os 3,2%. Em 2013, a recessão vai manter-se e deverá atingir pelo menos 2,3%.
Em 2010, apontava-se para uma taxa de desemprego nos 10,8%, em média anual, e 11,1% no último trimestre do ano. Entre os jovens (dos 15 aos 24 anos) a taxa de desemprego era já de 22,4%.  A taxa de desemprego em média anual ficou nos 15,7% em 2012, chegando, no quarto trimestre, a  novos máximos históricos chegando aos 16,9%, ficando-se o desemprego jovem pelos 37,7%. A previsão feita no início do programa apontava para uma taxa de desemprego na ordem dos 13%, já vai nos 18,5% de taxa média anual e num pico de quase 19%, este ano, em termos trimestrais. No primeiro trimestre deste ano, deu-se um agravamento da taxa trimestral para os 17,7%, enquanto o desemprego jovem subiu para os 42,1%. Ou seja, cerca de 300 000 desempregados.
Em 2010, o défice orçamental terminou o ano nos 8,8% do PIB. Em 2012, o resultado confirmado pelo Eurostat na primeira notificação do ano enviada a Bruxelas ao abrigo do Procedimento dos Défices Excessivos foi de 6,4%.  Para 2013 a meta acordada com a 'troika' foi de 5,5%, mas aguarda-se já que a meta resvale para 6,4% do PIB.
Em 2010, o rácio de dívida pública, de acordo com os critérios de Maastricht, fechou o ano nos 93,5%.  Em 2012, a dívida pública atingiu os 123,7% do PIB, mais 30,2 pontos percentuais do PIB em apenas dois anos!  Para 2013, o Governo começou por apontar para um valor da dívida pública na ordem dos 122,4%, mas a OCDE aponta já para mais de 127%.
Em 2010 o défice externo atingiu os 8,4% do PIB. Em 2012, o saldo externo fechou o ano com um saldo positivo da soma da balança corrente e de capital de 1.313 milhões de euros.
Desde que Portugal fez o pedido de ajuda à 'troika' de credores externos, o financiamento da banca à economia entrou em contracção, com uma queda de mais 20 mil milhões de euros nos empréstimos às empresas e famílias para 237.682 milhões de euros entre abril de 2011 e Março de 2013. Os empréstimos às empresas caíram de 11.825 milhões de euros para 105.236 milhões de euros. E o crédito aos particulares reduziu-se em 9.547 milhões de euros nestes quase dois anos, tendo-se fixado em Março nos 132.446 milhões de euros.
Passos Coelho prometeu tudo a todos e falhou em tudo, com todos.
Se há alternativa?! Nas urnas, talvez. Mas será uma alternativa credível? Quem acredita nos novos casamentos à direita e à esquerda? Está certa a insatisfação de ambos os eleitorados?
O Governo fez saber que um chumbo do Tribunal Constitucional ao Orçamento do Estado para 2013, tornaria o País ingovernável. Ou já seria ingovernável antes dele! Já Júlio César dizia que “nos confins da Ibéria vive um povo que nem se governava nem deixava governar” e nada sabia sobre as querelas entre um e outro. E, longe (ou não) vai o tempo em que Eça dizia “Ordinariamente, todos os ministros são inteligentes, escrevem bem, discursam com cortesia, e pura dicção, vão a faustosas inaugurações e são excelentes convivas. Porém, são nulos a resolver crises. Não têm a austeridade, nem a concepção, nem o instinto político, nem a experiência que faz o estadista. É assim que há muito tempo em Portugal são regidos os destinos políticos. Política de acaso, política de compadrio, política de expediente. País governado ao acaso, governado por vaidades e por interesses, por especulação e corrupção, por privilégio e influência de camarilha, será possível conservar a sua independência?"
E aqui estamos nós, no ano da Graça de Nosso Senhor de 2013, constatando a razão destes homens, e a insensatez de um Povo.
Falta cumprir Portugal!



quinta-feira, maio 09, 2013

A Biblioclastia entre os muitos aspectos de uma leitura



Amélia Vieira

Minha pupila liberta quem da página é cativo: o branco da
margem certa e da palavra
O negro vivo.

Al-Mu-Tamid



Este maravilhoso poema do Rei do outrora Al-Andaluz encerra toda a delícia do Verbo e sua leitura. O contraste entre estes tempos que delineiam o branco e o negro remete-nos ao papel visual de contempladores enlevados de um grande respeito linguístico. Ele transmite-nos bem a necessidade estética do grafismo na base de uma leitura.

Sabemos como foi longo o processo de metamorfose do Livro e como foi abrupta a sua transformação a partir de Gutenberg. Sabemos o quanto foi engrossando o mercado livresco até ao culminar dos tempos de hoje, numa tal diversidade e quantidade que quase nos faz esquecer o que subjaz ao seu espírito original. Vivemos a grande Fábrica Obsessiva dos espaços de Cultura com leituras obrigatórias, com uma componente maníaca pelas notas, referências, bibliografas, artigos, de tal ordem que pode provocar uma indigestão perante o signo que a própria palavra encerra. Confrontados que somos com esta proliferação sem freio poder-se-ia afirmar paradoxalmente que a Imprensa ao longo do tempo se ocupou de anular a Literatura. Uma legião de Astros e planetas a ela ligados se precipitaram para nos transpor a uma meta-realidade onde a nossa própria vida nela se suspende e penetra.
Forçados que somos à leitura – e tendo cada vez mais a expectativa do espectador – um enxame indefinido de autores proliferam, dando lugar ao que outrora fora um sentido, um caminho, uma missão. Tecnologicamente há que produzir histórias por detrás de outras imaginadas cuja feitura entra na forma da grossa libido da
necessidade de produzir efeitos sempre novos cuja memória suspende. O carácter dialéctico, mais humano e harmonioso, deu lugar a um reino compulsivo que imperou. O texto exegético, quase esquecido, feito exclusivamente por poetas, o texto que integra os tempos no além dos homens das “vozes”. Todo o homem Antigo
antes de escrever, ouviu. E ouviu o quê? Exactamente o que as Vozes, esses signos verbais lhe ditavam.
Neste momento estuda-se a matéria linguística com todos os enunciados de um saber nada regressivo o que faz que todas as matérias estejam vazias por serem outras descentralizadas do meio e dos antigos meios do Texto. Estuda-se de modo académico mas longe se encontram os legados dos fundamentos. A inércia expectante é agora um modelo que cria as suas próprias noções.
Mergulhados que estamos numa insubmissão à memória e sempre com a ideia giratória da novidade, entra-se na esfera compulsiva do louco, numa sucessão que esquece rápido e age sempre.
Todo este espaço mediológico se torna uma rápida e fugaz imagem da linguística que se expressa em todas as línguas, qual Babel, quase pondo fim ao conceito literário.
Remetendo-nos à frase do início do texto façamos um paralelismo entre ela e esta da Idade Média: “Preparava os bois e arava num prado branco, que enchia de brancas linhas, que com negro sémen germinava”. São propósitos e formas verbais muito próximas no seu conceito de divino encerrado na palavra. Por isso a poesia foi
um legado de transformação e desocultação verbal incomparáveis porque ela transportava essa centelha que ajuda a compreender as coisas que a palavra encerra. Não nos será por isso difícil entender que espartilhados por metodologias de pura e anacrónica complexidade ela quase expirasse. Ela precisará sempre de um outro nível de sedução e de uma natureza que não ceda perante o descontínuo barulho de vozes dissonantes.
Os signos, os sinais, as vanguardas descalcificadas da sua impressão dos factos, as imposições livrescas massificadas, o entretenimento como pedagogia e as novas tecnologias abriram um espaço que pode ser neste instante ameaçador.
Lembro que os primeiros livros eram ainda feitos em pele. Talvez voltar a escrever na pele…. Mas em que pele, que superfícies, que virtuais? Estamos num impasse a que bem poderíamos chamar de silêncio com todas as vozes.
Dentro das novas tecnologias e de um novo texto, o livro atingiu o seu zénite e daí descerá numa escuridão difícil de prever. Uma implosão dentro do próprio sistema poderá ser a biblioclastia que inicia de novo a sua margem. Não tenhamos dúvidas que não tardaremos a ver novas “fogueiras” iluminando as noites dos nossos vazios com a luz de uma criação imensa.
Queimar livros, fazer das bibliotecas o grande repasto das chamas foi um vírus no “verbo rígido” da Máquina do Tempo do homem falante. O livro afinal encerrava tudo aquilo que pode e não pode acontecer.
E, depois disto, com que branco, com que margem teceremos para o futuro os nossos ecrãs de leitura, quem são as tintas, quem a resgatará e com que olhos?
Fica a pergunta.
Talvez tenhamos de voltar a Al-Mu-Tamid.

Nota do Editor:
Solicitámos à autora o envio deste bonito texto depois de o vermos publicado no Jornal de Macau, o que agradecemos.