domingo, abril 03, 2011

Porque mataram o Padre Max

 Trinta e cinco anos de silêncio


No hospital perguntaram-lhe o que se passara. Ele respondeu:
– Colocaram-me uma bomba no carro e agora está a arder, mas não faz mal. É esta a democracia portuguesa.
De seguida, entrou em coma. Faleceu às seis horas e vinte minutos do dia 3 de Abril de 1976. Tinha 32 anos e dizia que não chegaria à idade de Cristo.
O atentado contra o Padre Maximino Barbosa de Sousa (Padre Max) e a sua aluna Maria de Lurdes Correia deu-se no dia anterior, ainda antes da meia-noite, em Vila Real, na estrada que liga esta cidade à freguesia da Cumieira. Uma bomba sofisticada, comandada à distância, pôs fim à liberdade de expressão de um sacerdote que, com toda a legitimidade, acreditava que um outro mundo seria possível, menos cruel com os pobres, na linha da sua interpretação que fazia do Evangelho. Maria de Lurdes teve morte imediata à explosão.
O Padre Max aceitara ser candidato como independente nas listas da UDP pelo círculo de Vila Real nas eleições para a Assembleia da República, marcadas para o dia 25 desse mês. A jovem, que fora aluna do padre e que passou entretanto a dar aulas com ele à noite, para estudantes-trabalhadores, era uma entusiasta militante da UDP.
O crime da Cumieira ficou impune. A bem dizer, está esquecido, graças ao manto de silêncio que cobre o caso, graças a estranhas cumplicidades e acordos. À direita e à esquerda. São poucas hoje as pessoas que aceitam falar no assunto. Os mais corajosos (muito poucos) temem processos por difamação.
Atribuir a autoria dos assassinatos aos “fascistas” é muito pouco. Lembrar o Padre Max e a Maria de Lurdes em datas sonantes pode ser um gesto inegável de boas intenções, mas, já que não é possível punir os criminosos, prestar “culto” às vítimas, só para “consumo interno”,  retarda o necessário esclarecimento quanto aos factores políticos, culturais e sociológicos que levaram ao recurso ao homicídio contra dois alvos quietos.
A nosso ver, a bomba da Cumieira foi um crime do “Estado democrático” contra o próprio “Estado democrático”.
Vejamos:
O sonho revolucionário do “Portugal vermelho” terminara cinco meses antes, com o 25 de Novembro de 1975, e com a consequente prisão e fuga para o estrangeiro de militantes revolucionários. Para a concretização deste objectivo – da chamada “normalização democrática” –,  os ditos “partidos moderados”, o Conselho da Revolução, o Grupo dos Nove, alas militares e até alguma da extrema-esquerda dissidente tinham-se aliado a gente da pior espécie, numa panóplia de gostos e objectivos: admiradores  convictos do Estado Novo e da ordem católica ultra-conservadora, antigos elementos da PIDE/DGS, operacionais da rede bombista de extrema-direita (exemplo: MDLP), membros de instituições do Estado e, sobretudo  e em perfeita ligação àqueles, grupos de indivíduos que tinham sede de poder e de dinheiro,  muitos deles vindos das antigas colónias e que eram hábeis em tráficos e armas. Estes ligavam-se àqueles, não com interesses meramente ideológicos, mas manipulavam o “lirismo fascista” dos primeiros; gente que vestia fato branco, óculos de sol,  brilhantina no cabelo, dirigentes desportivos com ambição a lugares em autarquias, conduziam carros topo de gama, gente que tinha vindo do nada e que se tinha associado a gente poderosa, entre falências e vigarices,  e que se preparava para introduzir o tráfico em Portugal a partir de África e de alguns países da Europa. Tinham aprendido com outros que, mesmo mal formados e  mal alfabetizados, seria possível enriquecer de qualquer maneira. Eram os “novos-ricos” – o novo capitalismo –, já que os velhos monopólios tinham sido desarticulados na noite de 11 de Março de 1975. Acreditavam, muitos dos nossos “democratas”, que estes cidadãos iriam fazer o “milagre económico”, de recuperação do país, em que, por ironia do destino, iria assentar o Estado Social de Abril.
Esta gente, de facto, tinha feito o “trabalho sujo” no chamado Verão Quente de 75, com o assalto e incêndio a sedes de partidos de esquerda no Norte, atentados à bomba, mortes, a chamada “Matança da Páscoa”, a “Maioria Silenciosa", etc… etc… Conquistada a “normalidade democrática”, por obra e graça destes grupos, estes passaram a exigir um espaço próprio no novo xadrez social, numa guerra interna de interesses  que fazem lembrar os grupos de descontes no seio da Nobreza e do Clero na Idade Média. Aliás, esta “aliança” aconteceu em muitas das democracias de estilo ocidental. Por exemplo, com o fim do antigo regime da URSS e a abertura ao estilo ocidental, as redes mafiosas do Leste fazem parte do “milagre económico” daquela região do mundo.
E que teve o Padre Max a ver com isso?
Nada! Completamente nada!
Maximino era um revolucionário… Mais revolucionário cultural do que político-partidário. Em França bebeu as ideias do Maio de 68; no Evangelho encontrou a opção preferencial pelos pobres. Encantava a juventude com o seu dinamismo. Romântico nas ideias, utópico na sua visão do mundo, pus em causa todo o conservadorismo, dizia o que pensava, vestia calças de ganga, transportava os alunos no seu carro, recusava o habitual estatuto de “abade”… Uma pessoa assim pode ser muito inconveniente, mas não é má pessoa… O padre Max não era bombista, não acreditamos que quisesse a ditadura do proletariado. Tinha um conceito de democracia mais avançado do que muitos, o da participação directa dos cidadãos. Mesmo ameaçado, estava consciente dos perigos que corria, amava a vida e o semelhante de igual forma. Um homem assim é grande demais para caber num partido ou numa religião. Fosse ou não versejador, o Padre Max era um poeta. Geneticamente falando. Trazia a Utopia nas veias. Ao longo da História, foram estas pessoas que fizeram andar o mundo e a Humanidade.
Se Maximino tivesse concorrido pelo PCP, certamente, não o teriam escolhido para a morte. Não estariam interessados em fazer um “mártir” de um partido bem organizado, com força no país suficiente para fazer do caso uma nova “Catarina Eufémia”, desta vez em Trás-os-Montes.
Escolheram um homem que apoiava um partido pequeno. Como tal, foi mais fácil não se descobrir a verdade. Escolheram o Padre Max como poderiam ter escolhido outra figura carismática, com o objectivo de demonstrarem ao Estado que, afinal, aqueles que tinham sido usados pelas “forças moderadas” para o “trabalho sujo” contra os revolucionários tinham, agora, capacidade e força suficiente para matar quem quer que fosse e da forma mais aparatosa. Escolheram um revolucionário; para outra vez, escolheriam uma figura mais próxima do sistema. Encerrar-lhes definitivamente as portas poderia desencadear mais atentados, mais mortes, e a “normalização democrática” voltaria estar em causa.