sábado, fevereiro 25, 2012

Eduardo Luís Cortesão: "O filho do povo, com nobreza e com modernidade"



Entrevista a Eduardo Luís Cortesão, em 1988, por  José Carlos Pereira
Desenho de Manuel San Payo


Um ano depois (1988) de o Zeca Afonso ter partido, em viagem para o outro lado da terra (expressão que, semanticamente, parece representar a palavra “utopia”) –, tive a grata oportunidade de entrevistar para um programa da Rádio Felgueiras uma outra figura proeminente do reportório nacional: Eduardo Luís Cortesão, professor catedrático de Psiquiatria, psicanalista, falecido em 1991, e que muito se notabilizou por ter fundado, em 1958, e desenvolvido o Grupo de Estudos de Grupanálise em Portugal.
Na altura, Eduardo Luís Cortesão pertencia a um dos órgãos sociais da AJA, sendo João Afonso dos Santos o então presidente da direcção. Obviamente, o programa de rádio, de duas horas, foi inteiramente dedicado ao estudo sobre a vida e a obra do Zeca.
Decorridos vinte e quatro anos após essa entrevista, considero que o seu conteúdo e a sua essencial mensagem se mantêm, praticamente, actuais. Eis um excerto da mesma:


RF – Senhor Professor, o que pensa sobre a vida e a obra de José Afonso?
ELC – Penso que na história de um país é importante que haja figuras que possam merecer o nosso respeito e que sejam alvo da nossa estima. José Afonso é uma figura histórica do património artístico do nosso povo, porque José Afonso foi um homem com coragem, foi um homem que lutou, foi um homem bom, foi um homem que soube amar, foi um artista e um poeta excepcional.
A mensagem de José Afonso tem sido deliberadamente esquecida e reprimida e não publicada e asfixiada e ofuscada pelos poderes políticos que estão neste país. Isso constitui, para mim, um crime grave, visto que os nossos jovens, a nossa juventude, as mulheres e os homens deste país necessitavam de saber mais pormenores do que foi a vida, do que foi a coragem desse grande português.

RF – Poder-se-á dizer que José Afonso, comportando-se à maneira de uma criança feliz num bairro de lata, era filho do Maio de 68 e pai, juntamente com outros, de Abril de 74. Concorda comigo, senhor Professor?
ELC – Eu concordo consigo. Mas creio que José Afonso tem dentro dele as raízes e a herança de Viriato, de Afonso Henriques, de todos os lutadores (…). Ele representa algo, que é o filho do povo com nobreza e com modernidade. Isto é muito importante, porque, neste momento, é que no nosso país se pretende falar de modernidade, o país, os homens e as mulheres não estão correctos, estão envelhecendo, estão caquécticos de estupidificação. E José Afonso foi um homem da modernidade, foi um homem que lutou, louvou e defendeu aquilo que é actual mas sempre em relação com o passado e numa perspectiva futura.
(…) Eu conheci José Afonso e convivi com ele muito intimamente durante um período curto de tempo e não tenho qualquer dúvida que o que se justificava neste momento é que se fizesse um filme sobre a vida de José Afonso, um filme sobre a sua mensagem. Porque nós, portugueses, neste momento somos um país triste; somos um país pobre de ideias; somos um país de indivíduos cinzentos, que se levantam tristemente, que rancorosamente labutam pelo seu pão, que fazem negócios doidos. Nós, neste momento, somos um país sem poesia, sem beleza, e José Afonso devia ser evocado, porque foi num outro período histórico de Portugal, em que se viveu, realmente, a escuridão, a estupidificação e o abandono, que ele apareceu e deu alma e esperança a muito de nós.

RF – O que podemos fazer por Abril?
ELC – (…) Falar com pessoas que sejam jovens como você, falar com jovens como eu, que não desesperamos, não somos pessimistas e continuamos a alertar para aquilo que há de belo e que há de positivo na nossa cultura. (…) Nós não devemos desesperar, não devemos desistir, ainda que, neste momento, já não tenhamos o Zeca Afonso para cantar connosco que é preciso “avisar a malta”. É, talvez, necessário que façamos algo semelhante: que continuemos aquela mensagem tão pura, tão nobre, tão viril, tão corajosa, que esse grande amigo, esse grande português nos deixou.