sábado, fevereiro 25, 2012

Eduardo Luís Cortesão: "O filho do povo, com nobreza e com modernidade"



Entrevista a Eduardo Luís Cortesão, em 1988, por  José Carlos Pereira
Desenho de Manuel San Payo


Um ano depois (1988) de o Zeca Afonso ter partido, em viagem para o outro lado da terra (expressão que, semanticamente, parece representar a palavra “utopia”) –, tive a grata oportunidade de entrevistar para um programa da Rádio Felgueiras uma outra figura proeminente do reportório nacional: Eduardo Luís Cortesão, professor catedrático de Psiquiatria, psicanalista, falecido em 1991, e que muito se notabilizou por ter fundado, em 1958, e desenvolvido o Grupo de Estudos de Grupanálise em Portugal.
Na altura, Eduardo Luís Cortesão pertencia a um dos órgãos sociais da AJA, sendo João Afonso dos Santos o então presidente da direcção. Obviamente, o programa de rádio, de duas horas, foi inteiramente dedicado ao estudo sobre a vida e a obra do Zeca.
Decorridos vinte e quatro anos após essa entrevista, considero que o seu conteúdo e a sua essencial mensagem se mantêm, praticamente, actuais. Eis um excerto da mesma:


RF – Senhor Professor, o que pensa sobre a vida e a obra de José Afonso?
ELC – Penso que na história de um país é importante que haja figuras que possam merecer o nosso respeito e que sejam alvo da nossa estima. José Afonso é uma figura histórica do património artístico do nosso povo, porque José Afonso foi um homem com coragem, foi um homem que lutou, foi um homem bom, foi um homem que soube amar, foi um artista e um poeta excepcional.
A mensagem de José Afonso tem sido deliberadamente esquecida e reprimida e não publicada e asfixiada e ofuscada pelos poderes políticos que estão neste país. Isso constitui, para mim, um crime grave, visto que os nossos jovens, a nossa juventude, as mulheres e os homens deste país necessitavam de saber mais pormenores do que foi a vida, do que foi a coragem desse grande português.

RF – Poder-se-á dizer que José Afonso, comportando-se à maneira de uma criança feliz num bairro de lata, era filho do Maio de 68 e pai, juntamente com outros, de Abril de 74. Concorda comigo, senhor Professor?
ELC – Eu concordo consigo. Mas creio que José Afonso tem dentro dele as raízes e a herança de Viriato, de Afonso Henriques, de todos os lutadores (…). Ele representa algo, que é o filho do povo com nobreza e com modernidade. Isto é muito importante, porque, neste momento, é que no nosso país se pretende falar de modernidade, o país, os homens e as mulheres não estão correctos, estão envelhecendo, estão caquécticos de estupidificação. E José Afonso foi um homem da modernidade, foi um homem que lutou, louvou e defendeu aquilo que é actual mas sempre em relação com o passado e numa perspectiva futura.
(…) Eu conheci José Afonso e convivi com ele muito intimamente durante um período curto de tempo e não tenho qualquer dúvida que o que se justificava neste momento é que se fizesse um filme sobre a vida de José Afonso, um filme sobre a sua mensagem. Porque nós, portugueses, neste momento somos um país triste; somos um país pobre de ideias; somos um país de indivíduos cinzentos, que se levantam tristemente, que rancorosamente labutam pelo seu pão, que fazem negócios doidos. Nós, neste momento, somos um país sem poesia, sem beleza, e José Afonso devia ser evocado, porque foi num outro período histórico de Portugal, em que se viveu, realmente, a escuridão, a estupidificação e o abandono, que ele apareceu e deu alma e esperança a muito de nós.

RF – O que podemos fazer por Abril?
ELC – (…) Falar com pessoas que sejam jovens como você, falar com jovens como eu, que não desesperamos, não somos pessimistas e continuamos a alertar para aquilo que há de belo e que há de positivo na nossa cultura. (…) Nós não devemos desesperar, não devemos desistir, ainda que, neste momento, já não tenhamos o Zeca Afonso para cantar connosco que é preciso “avisar a malta”. É, talvez, necessário que façamos algo semelhante: que continuemos aquela mensagem tão pura, tão nobre, tão viril, tão corajosa, que esse grande amigo, esse grande português nos deixou.

Joana Afonso: genialiadde e intemporalidade de Zeca


 Joana Afonso
Estudante universitária e 
membro activo do núcleo da AJA Norte (Porto)

Quando José Afonso foi levado pela doença, eu ainda não era nascida. Contudo, a sua voz sempre ecoou na minha casa de infância, pela mão dos meus pais, que foram, durante os anos de precariedade do avô cavernoso e o período turbulento que se seguiu, mobilizados e reconfortados pelas suas canções. A verdadeira tomada de consciência da mensagem das músicas só a comecei a ter com a entrada na faculdade e consequente mudança para a cidade do Porto, momento em que a realidade foi-se gradualmente sobrepondo aos anos de inocência permeados pela pequena cidade que me tinha visto crescer. A admiração pelo homem e pelo legado de intervenção cívica por de trás das letras e das melodias foi crescendo com a minha percepção relativamente à genialidade e intemporalidade da sua obra.
A importância de fazer frente às adversidades que nos vêm virar as quilhas e os desafios de inquietação que José Afonso foi lançando às novas gerações fazem, para mim, mais sentido do que nunca. Hoje, com 23 anos, vejo que a evocação dos 25 anos sobre o momento final em que José Afonso pegou na trouxa e zarpou é feita num clima de descrença e de tímido desassossego. A consciência crescente da agudização das desigualdades sociais no nosso país não pode ser vista de um modo passivo, especialmente pela gente da minha geração. Hoje, como ontem, o lirismo e o exemplo cívico deste homem devem funcionar como alavanca para as movimentações de oposição ao marasmo social a que nos votaram. É urgente trazer para as camadas mais jovens e mais populares a mensagem de protesto e de mudança para um mundo melhor e uma realidade mais justa, pela qual José Afonso dedicou a sua existência. É urgente um grito de guerra de toda uma geração que perceba que existe a possibilidade de uma vida melhor.

sexta-feira, fevereiro 24, 2012

Maria Inês Almeida: "A sua obra criou raízes no nosso colectivo e na nossa cultura"


Maria Inês Almeida
(Escritora e jornalista)


O que mais aprecio na  figura de José Afonso é a obra artística, que o seu talento tornou intemporal e universal, ou seja, ultrapassando as fronteiras do seu tempo e do seu espaço para se manter sempre actual, em qualquer época ou lugar. E falo tanto da sua produção poética (nem sempre devidamente valorizada) como da sua música (já que cada canção tinha personalidade melódica própria, e parte significativa delas permanecem nos nossos ouvidos). Acho curioso que os portugueses conservem na sua linguagem comum muitas expressões retiradas de canções de Zeca Afonso, como "eles comem tudo e não deixam nada", "venham mais cinco", "traz outro amigo também", "o povo é quem mais ordena" ou "o que faz falta é animar a malta". Isto mostra como a sua obra criou raízes no nosso colectivo e na nossa cultura, o que só um grande artista consegue. Além disso, há todo um conjunto de valores que ele transmitiu nas suas canções e com os quais é fácil identificarmo-nos: solidariedade, fraternidade, igualdade, generosidade, justiça. Este humanismo ajuda-me a reforçar a admiração por ele.

Por António Ramos Rosa e Manuel San Payo



António Ramos Rosa (poema)
Manuel San Payo (desenho)


Para José Afonso


O canto que se erguia
na tua voz de vento
era de sangue e oiro
e um astro insubmisso
que era menino e homem
fulgurava nas águas
entre fogos silvestres.
Cantavas para todos
os acordes da terra,
os obscuros gritos
e os delírios e as fúrias
de uma revolta justa
contra eternos vampiros.
Que imensa a aventura
da luz por entre as sombras!
A vida convertia-se
num rio incandescente
e num prodígio branco
o canto sobre os barcos!
E o desejo tão fundo
centrava-se num ponto
em que atingia o uno
e a claridade intacta.
O canto era carícia
para uma ferida extrema
que era de todos nós
na angústia insustentável.
Mas ressurgia dela
a mais fina energia
ressuscitando o ser
em plenitude de água
e de um fogo amoroso.
É já manhã cantor
e o teu canto não cessa
onde não há a morte
e o coração começa.

quinta-feira, fevereiro 23, 2012

Anabela Melão: "Os gritos que hoje se ouvem comovem-nos? Ou esbarram na cortina do silêncio?"

ZECA - A CANÇÃO


Anabela Melão
(jurista)


25 anos volvidos sobre a sua morte, “o rosto da utopia” Zeca Afonso suscita-nos a reflexão sobre o momento presente. Em “As Memórias de uma aula de Zeca Afonso em Setúbal, em 1967 (Hélida Carvalho Santos), Zeca recusava-se a ser cúmplice paralisado e indiferente da “fantochada sem interesse” própria do regime salazarista.
Num claro momento em que o clima nacional se presta a desânimos e a desilusões o Zeca tem esse dom de despertar em nós a inquietude com tom de revolta. Fazem-nos falta as suas canções com nuances de gritos manchados de dor. A dor do que leva e ao que conduz a falta do pão na mesa.
Haveria, na altura, mais razões para se dizer “O que é preciso é criar desassossego. Quando começamos a criar álibis para justificar o nosso conformismo, então está tudo lixado! (…) Acho que, acima de tudo, é preciso agitar, não ficar parado, ter coragem, quer se trate de música ou de política. E nós, neste país, somos tão pouco corajosos que, qualquer dia, estamos reduzidos à condição de ‘homenzinhos’ e ‘mulherzinhas’. Temos é que ser gente, pá!”? (entrevista a Viriato Teles, in «Se7e», 27/11/85).
E, contudo, hoje, ante o silêncio e o conformismo de um povo que sangra e que sofre sem um ai e sem um ui as suas canções retomam força e propriedade.
Essa voz do silêncio e esse conformismo suscitam-nos alguma tristeza.
Poderemos dizer, como ele “Não me arrependo de nada do que fiz. Mais: eu sou aquilo que fiz. Embora com reservas acreditava o suficiente no que estava a fazer, e isso é que fica.”? (entrevista a Viriato Teles, in «O Jornal», 27/4/84).
Cremos que não. O peso da omissão custa-nos tanto quanto lhe custava a ele a omissão de um povo constrangido pela opressão externa, a par da interna. Os gritos que hoje se ouvem comovem-nos? Ou esbarram na cortina do silêncio?
“Quando as pessoas param há como que um pacto implícito com o inimigo, tanto no campo político, como no campo estético e cultural. E, por vezes, o inimigo somos nós próprios, a nossa própria consciência e os alíbis de que nos servimos para justificar a modorra e o abandono dos campos de luta” (dizia ele ainda na mesma entrevista).
É talvez com este registo que nos devemos demorar.
Talvez devêssemos demorar-nos na enormidade da força de uma canção.
Talvez devêssemos gritando a cantar.
Talvez devêssemos Ser, de novo, “O rosto da utopia”.
Como o Zeca.
Afinal, já lá vão 25 anos. E hoje o seu grito é o nosso grito. Há que fazer dele a nossa canção.

São José Lapa: "Querido José Afonso!"


São José Lapa
(actriz)


Aos meus 15 anos, o José Afonso era para mim a figura mítica do "artista que contestava o governo salazarista". Quinze anos mais tarde, recêbemo-lo em Viseu, pela Centelha, num dos mais emocionantes espectáculos após o 25 de Abril de que me recordo. No Cavaquistâo havia N gente que o admirava e uma sala de 300 lugares com chão em areia... hahaha... Era a sala de espectáculos da feira de São Mateus, e estávamos em 1978, encheu-se nessa noite com três vezes mais a sua lotação, mil e tal pessoas o aplaudiram e cantaram as suas canções e os seus protestos... Querido José Afonso, que na nossa casa descansou das 7 horas de viagem que nessa época demorava fazer a viagem Lisboa /Viseu...
Composições, poemas, arranjos e a voz permanecerão durante muito tempo com uma absoluta e imensa qualidade, tão contemporâneo como os que ainda vivos repetem o estribilho da sua canção "VENHAM MAIS CINCO"...
Enorme ZECA!

Cristina Carvalho: "atitude de vida que não se esquece, de dádiva permanente e alerta constante"



Para ZECA AFONSO


Cristina Carvalho
(escritora)

No dia 23 de Fevereiro passam 25 anos sobre a morte de Zeca Afonso. Símbolo da resistência ao regime que escureceu o país e o povo, Zeca foi e sempre será recordado como um grande poeta, como o reconstrutor da palavra pública ensaiada em canções que nos iam transmitindo uma crítica intensa sublinhada por maravilhosos acordes que todos nós, os desta geração, sabemos cantar de memória.
Toda a vida de Zeca se passou num desenhar fiel e constante de um perfil coletivo que tardava em vingar, num foco de luz iluminando a dimensão política possível. E sempre pelos poemas e pelas canções, nos inúmeros álbuns que gravou, o país e a Europa foram tomando consciência da inutilidade e da incompreensão daquele regime opressor e inútil.
Quem poderá algum dia esquecer “Os Vampiros” ou “O Menino do Bairro Negro” com letras inspiradas na miséria nacional que, desde o norte ao sul, apontavam a pobreza e indigência social e cultural? Quem poderá algum dia esquecer “Grândola Vila Morena” entoada até à exaustão, tal como se agitou a bandeira de liberdade e que foi a senha do MFA no dia 25 de Abril de 1974? Atitude de vida que não se esquece, de dádiva permanente e alerta constante, vida de dura luta em todas as direções, esse percurso de Zeca Afonso que tão cedo nos deixou.
Acredito que não deve haver ninguém que não conheça a sua poética, as suas canções, a fibra de resistência e a força que o marcou e que nos transmitiu para sempre.
Zeca Afonso nunca será esquecido.

Cristina Carvalho
22 de Fevereiro 2012

Helena Osório: É possível um José Afonso para a infância?


Entre o possível e o improvável




 Helena Osório
(Escritora de literatura infanto-juvenil)


É possível um José Afonso para a infância? Diria que sim, mesmo não representando a sua obra quase nada para as novas gerações.
Os poemas de Zeca Afonso não são propriamente dirigidos a crianças nem se estudam nas escolas, mas podiam muito bem ser. São curtos, simples, sugestivos, coloridos. E algumas músicas parecem-me indicadas para os mais jovens: Canção de Embalar, Verdes São os Campos, Milho Verde, Mar Alto.
Os meus filhos têm uma avó de coração que lhes cantava a Canção de Embalar de Zeca Afonso e Mãe Negra de Paulo de Carvalho, para adormecerem. Confesso ser mais uma mulher do bel canto, pelo que lhes cantava a Avé Maria de Schubert ou Belle Nuit de Offenbach. As crianças precisam de todas estas vozes, versos e emoções que as enriquecem desde o berço.
Por curiosidade, José Afonso era o nome de meu avô materno, cujas origens remotas também se aproximam de Aveiro. Ainda ostento no apelido o Afonso de Azevedo desse ramo. Eventualmente, estaremos ligados ao nome familiar de Zeca Afonso e à aventura que parece circular no sangue da família – a qual levou pais e irmãos a Angola e Moçambique, como eles e como nós que vivemos em Angola desde o tempo dos bisavós pouco depois da I Guerra Mundial.
Contudo, por questões políticas, José Afonso (meu avô), não me deixava cantarolar, em criança, as canções de Zeca Afonso (cantor e compositor de Aveiro), que tão bem entravam no ouvido. Nós, crianças, cantávamo-las no recreio da escola e a caminho de casa, sem sabermos se eram comunistas ou fascistas, só porque soavam bem. Mas, o tempo, depressa as esqueceu.
Chegou, se calhar, agora, o tempo de as estudarmos melhor e de recuperarmos algumas menos ouvidas como Galinhas do Mato que data de 1985. Eu já não a cantarolei, mas é uma maravilha interpretada por crianças, até porque nos reserva o fascínio do ritmo africano que, para mim, faz parte de um longe perto da infância vivida em Angola. Tal como a infância de Zeca Afonso, em África, recordada aqui na idade madura com todo o enriquecimento de uma vida e sem podermos esquecer que o mesmo Zeca Afonso nunca deixou de ser, afinal, um professor de todos nós apesar de morrer só.
Recordo assim, neste espaço, a Canção de Embalar, para que se leiam bem as palavras, sem a música; e para que se (re)encontre a verdadeira beleza destes versos tão claros e puros; e ainda para que outros professores olhem para eles e os cultivem no ensino; finalmente, para que se adormeça no encantamento:

Dorme meu menino a estrela d'alva 
Já a procurei e não a vi 
Se ela não vier de madrugada 
Outra que eu souber será pra ti ô ô ô ô ô ô ô ô ô ô ô ô (bis) 
Outra que eu souber na noite escura 
Sobre o teu sorriso de encantar 
Ouvirás cantando nas alturas 
Trovas e cantigas de embalar 
Trovas e cantigas muito belas 
Afina a garganta meu cantor 
Quando a luz se apaga nas janelas 
Perde a estrela d'alva o seu fulgor 
Perde a estrela d'alva pequenina 
Se outra não vier para a render 
Dorme quinda à noite é uma menina 
Deixa-a vir também adormecer.

Amélia Vieira: "há uma estranha santidade neste homem!"


Amélia Vieira
(poeta)

José Afonso.

Falar deste homem não é um assunto tão fácil como a uma primeira abordagem parece. É alguém de absolutamente incontornável na música portuguesa, não tanto pela quimera da intervenção, mas sim, e mais, pela forma invocatória de lauto sagrado e ladainha que percorre a sua voz de alto a baixo como se de uma memória se tratasse. Como homem também tinha a aura de uma certa intocabilidade. Feito de severo silêncio, e de uma doçura imperceptível, mas doce, havia nele a intransigência dos religiosos e a síntese de um homem que compõe oráculos.
Sempre amei a sua integridade. É uma emanação lavada, enxuta, limpa. Isso dá brilho às imagens, ao fluxo da mensagem que fazemos delas. E, quando a voz se lhe juntava na garganta era ainda esse espírito algo indomável que percorria o salão da nossa alma e a purificava também.
Há uma estranha santidade neste homem! Sempre que o oiço os meus níveis de tensão voltam a ser harmoniosos. Os animais param, gostam….parecem escutá-lo. Não estou focada nas vozes, nos agudos, nos graves…mas toda a dimensão de jogral ,de marinheiro, de pescadores de Barcas Belas …me enfeitiça e me comove. Luta pelo bem, dá recados aos mais pobres, denuncia a usura, quebra o esqueleto do já feito. É fraterno como um franciscano.
Sempre, em cada Natal, oiço o seu Natal dos Pobres, as Janeiras, e a Canção de Embalar. Nós acreditamos nesse percurso de Rei Mago. Há nele a estrela D ´Álva que nunca perdeu fulgor.
Como arquétipo ele é mais que um cantor, interprete, ele é um pouco de nós como civilização, fazendo a retenção poética de um dom, que a vida dá, tão arbitrariamente, quanto expele lava. Lembro-me bem, desse momento da sua morte, exactamente porque coincidiu com a de meu avô. Foram assim, lágrimas que se misturaram numa pena sentida de um ciclo de homens que ali encerrava. Os meus guardiões tinham partido sem que alguma vez pensasse no quanto e a que ponto os seus exemplos me iriam servir de guia. Parece que há homens que nascem para estrelas. Seguram a nossa vida sempre pela mão e nada vive mais que as suas lembranças. Não sei se eles teriam resistido à hecatombe da perda de colectivo, dessa arte imensa herdade das primeiras aldeias que vivendo longe se agrupavam em canto e oração, em falas, em ciclos, em invocações. Não seriam certamente capazes. Neles havia ainda o culto de uma certa intransigência.
Hoje, por vezes, oiço-o, com a gravidade de quem tem de ter espaço para um culto, uma prece… dou-o a ouvir aos jovens que já nada reconhecem desta fonte, dado que o caudal dela há muito que morreu, não insiste, respeito…são coisas…! Talvez volte com força estranha um dia quando menos se espere.
Os mantras são formas de despertar a alma do seu adormecimento…de inundar os diques parados… eu nunca renunciei ao seu chamamento e sigo caminhos longos ao som da paz do seu canto. Tudo aquilo é tão inteligente. É a magia do bem!
Passaram-se vinte e cinco anos, que singularmente são Bodas de Prata. A prata de um casamento que a morte não apaga. Núpcias eternas…Vou ouvi-lo… estou a ouvi-lo, e mais uma vez todas as lágrimas se misturam….Um canto chão também será lembrado.
Quando se faz o levantamento da música portuguesa, origens e locais, eles estão por todo o lado. O Adriano Correia de Oliveira está nas cantigas de Maio, O José Afonso mais nos esponsais, é tão bonito…cheiram a feno, a papoilas, a trigo… sentem-se sinos, bebe-se leite, prova-se o mel, come-se o pão numa terra ainda povoada de coisas que são bálsamo. Nunca os dissocio desta faina, deste saber filosófico, desta dádiva ao grupo. São Mestres, são também artífices, cantam e dão-nos as seivas, andarilhos, são aqueles empregados sazonais. Não raro os vejo como uma réplica de Tobias andando com o seu cão atrás, numa viagem de cidade em cidade. Aquela viagem em que aparece o Arcanjo Rafael. São imagens assim que tenho deles…nunca conseguirei dissociá-los deste idílicos seres.
As pessoas geralmente não sabem porque gostam. Gostam e pronto. Mas a complexidade de algo de que se gosta é muito grande. Assim ele. Ele é um grande caminho espalhado no A.D.N do nosso sangue colectivo. Amamo-lo, porque obedece a um cânone cultural profundo. E assim, o tempo passa, mas guardando o seu recado.
Quase a chegar aos mil, quero agora pedir a luz dos ciclos finais e tentar dizer que foi uma honra ter nascido na sua contemporaneidade. O nosso ser obedece, e é tudo o que ouvimos e escutamos, as mudanças guiadas pelos hinos, as canções de ordem e as de embalar. Não seria eu, se pensasse agora separada do meu canto interior que ele mesmo cantou para que não me perdesse nesta vida tão descaracterizada.
Quero pensar que de tempos a tempos há correctores de memória que aparecem no mundo a cantar, porque sempre haverá outros que aparecerão aos tiros, e matando-o….a “pele” da vida é um memorando. Creio que fazer um hino é muito menos importante que juntar todas as luas e canta-las nas suas quatro parcelas. Elas vão cheias de vocábulos e são novas ciclicamente. Aprendi a amar esta intemporalidade e custa-me festejar efemérides, mas elas serão sempre precisas para lembrar a cada um de nós o contorno da nossa própria efemeridade face a este que não para pra nós, jamais de cantar.
Normalmente as pessoas que nascem em Agosto, morrem em Fevereiro. Se forem mesmo de Agosto, augustas e nobres como é o caso. O relógio da vida soube fazer nelas coisas muito boas. No essencial estavam certos. Vou ouvi-lo, vou lembrá-lo no sossego da minha alma, porque não quero agora juntar-me ao coro. O momento é de Cântico Negro. Não é profecia.
Ele era mais um Cisne Branco! E o canto, o canto torna-se divino no último instante…deslizando serena na espuma das águas.

Amélia Vieira

21 de Fevereiro de 2012

Maria Dulce Varela: "Homem simples, cheio de inquietações, sim, mas amante da paz entre todos".

Zeca Afonso  - 25 anos depois



Maria Dulce Varela
(Jornalista.  Trabalhou na RDP
e na Rádio Comercial, entre outros órgãos)



José Afonso, o Zeca, teve uma despedida emocionante, 
que eu, nessa altura, a trabalhar na Rádio Comercial, 
fui encarregada de fazer a cobertura em directo, 
que nunca mais esquecerei.


Parece talvez demasiado simples começar esta breve crónica de homenagem a José Afonso, que a 23 Fevereiro, já lá vão 25 anos, nos deixou, vítima de esclerose lateral miotrófica, no hospital de Sétubal. Mas na sua grandeza, ele era um Homem simples, cheio de inquietações, sim, mas amante da paz entre todos.

Ainda que para muitos “Grândola Vila Morena” tenha sido a canção que marcou o 25 de Abril, para mim, pessoalmente, “Venham mais Cinco” tem, hoje em dia, um significado muito especial. Porque a dura realidade me faz ouvir, lá muito baixinho, dentro da minha alma, que é preciso que “VENHAM MUITO MAIS CINCO”, muitos mais mesmo, para que, unidos, consigamos aquilo que Zeca Afonso tanto desejava – a unidade, a liberdade, uma visão de estar na vida incomparável.

O ter vivido entre Aveiro, onde nasceu, e Angola e Moçambique, por certo o influenciou, ele que era licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas pela Faculdade de Letras. O regresso a Portugal deveu-se à oposição do regime colonial. O seu último destino foi Setúbal, onde foi colocado como professor e onde, depois de uma grave doença, viria a saber que fora expulso do ensino oficial, passando a viver de explicações que dava. São tantas e tantas as canções que nos vêm à lembrança. O “bicho-cantor”, alcunha que lhe deram no liceu, por cantar serenatas durante as praxes, enche-nos a alma, enche-nos o coração de saudade – “Cantares de José Afonso”, “Contos Velhos, Rumos Novos”, “Menina dos Olhos Tristes”, “Cantigas de Maio”, “Eu vou ser como a Toupeira” e no Natal de 73, depois de ter estado preso em Caxias, grava em Paris, com a colaboração de José Mário Branco, “Venham Mais 5”.

José Afonso, o Zeca, teve uma despedida emocionante, que eu, nessa altura, a trabalhar na Rádio Comercial, fui encarregada de fazer a cobertura em directo, que nunca mais esquecerei. Com as lágrimas a cair pela cara abaixo, sem poder conter a emoção e o desgosto (os jornalistas também têm o direito a emocionar-se), despedi-me do Zeca à minha maneira – falando, contando, a par e passo, o que me rodeava. Com a sensação de que um bocado de muitos de nós nos tinha sido tirado. Agora, que faz 25 anos que ele nos deixou, fisicamente, porque continua entre nós, deixando-nos a lutar com a mesma saudade, resta-me desejar que realmente “Venham mais cinco”, porque precisamos desses e muitos mais. É, com toda a certeza, o que o Zeca Afonso espera ainda de nós. Não podemos desiludi-lo! Até sempre.

Maria Dulce Varela

quarta-feira, fevereiro 22, 2012

Diário de Felgueiras celebra José Afonso, 25 anos após o seu falecimento



Passam amanhã, dia 23 de Fevereiro, 25 anos (um quarto de século!) sobre a morte de José Afonso – carinhosamente, tratado por Zeca Afonso.
Em Novembro passado, o DIÁRIO DE FELGUEIRAS (DF) aderiu ao projecto “Amigos Maiores que o Pensamento”, que tem por objectivo celebrar, em 2012 e por todo o país, José Afonso e Adriano Correia de Oliveira, no ano em que decorrem, respectivamente, 25 e 30 anos após os seus falecimentos.
No que se refere ao cantor de Grândola, Vila Morena, o DF publica, a partir de amanhã e até ao próximo domingo, um “suplemento cultural” com depoimentos de figuras nacionais da cultura, do jornalismo e da cidadania sobre Zeca Afonso, na passagem desta efeméride.
Sem pretendermos projectar o culto da personalidade em volta de pessoas que, a nossa ver, são a alma genuína da nossa cultura e da nossa cidadania, prestamos aqui o nosso tributo. No que concerne a Zeca Afonso, vemo-lo como uma figura excepcional, de grande humildade, honestidade, coerência, bondade e solidariedade. Para nós, o Zeca é muito mais que o cantor de intervenção e de resistência antifascista; é o poeta da Utopia – da “cidade sem muros nem ameias” –, das raízes da nossa portugalidade, do canto maternal, um grande poeta amoroso, muitas vezes irónico. No fundo, um menino!

Assim sendo, o DF convidou para escreverem sobre José Afonso figuras como Cristina Carvalho (escritora, filha de António Gedeão), Amélia Vieira (poetisa), Helena Osório (escritora infanto-juvenil), São José Lapa (actriz), Maria Dulce Varela (jornalista), Anabela Melão (jurista), entre outras. O pintor Manuel San Payo cedeu-nos um dos seus desenhos para esta edição. É reservado o direito de propriedade intelectual aos autores dos trabalhos.

domingo, fevereiro 19, 2012

António Gedeão

Fotografia: Cristina Carvalho


Passam hoje 15 anos sobre a morte do Poeta e homem de ciência Rómulo de Carvalho, uma das figuras mais marcantes da Cultura e da Ciência do século XX português.
Mais conhecido por António Gedeão (seu pseudónimo), o autor do poema "Pedra Filosofal" concedeu, em Março de 1995, uma longa entrevista a Maria Augusta Silva, para o DN. 
Num gesto de singelo tributo a este maravilhoso senhor, deixamos aqui, em ficheiro PDF, excertos dessa entrevista.

sábado, fevereiro 18, 2012

Entrudo



"Era no tempo em que ao carnaval se chamava entrudo, o tempo em que em vez das máscaras brilhavam os limões de cheiro, as caçarolas d'água, os banhos, e várias graças que foram substituídas por outras, não sei se melhores se piores."

Machado de Assis

domingo, fevereiro 12, 2012

Manuel Coelho dos Santos


 Virgínia Moura, Óscar Lopes, Rui Luís Gomes, Mário Cal Brandão, 
entre outros, durante um comício da oposição ao Estado Novo.


Deu-se mal com os partidos, mas esteve sempre de bem com a Política – ou seja, com a sua consciência e com a intervenção cívica exigida em diversos momentos políticos da sua vida.
Manuel Coelho dos Santos faleceu na semana que passou, com 84 anos de idade. Advogado, escritor e oposicionista ao Estado Novo, o seu nome é, numa só frase, sinónimo de pureza, honra e honestidade.
Republicano e, a bem dizer, simpatizante de uma social-democracia com mais consciência social, Coelho dos Santos, era, ultimamente, o único sobrevivente do grupo de advogados democratas do Porto que, em 1958, convidou o general Humberto Delgado a candidatar-se à Presidência da República, contra o candidato do regime, Américo Thomaz.
Nesse grupo portuense de activistas democratas pontificavam homens como Mário Cal Brandão, Arnaldo Mesquita, Artur Santos Silva e António Macedo. Ainda no tempo do Estado Novo, tendo sido um dos fundadores da ASP – Associação Socialista Portuguesa (antecessora do PS), Coelho dos Santos foi um corajoso defensor de presos políticos, principalmente do PCP, nos Tribunais Plenários. Chegou a deputado da Assembleia Nacional eleito pela lista da CEUD (oposição), mas em 1975, já depois da Revolução de Abril, não quis integrar o partido de Mário Soares. Uma década mais tarde abandonou o cargo de deputado à Assembleia da República, para a qual tinha sido eleito nas listas do PSD na qualidade de independente. A amnistia a Otelo Saraiva de Carvalho, arguido no caso FUP/FP 25 de Abril, terá sido um dos raros momentos no pós-25 de Abril em que Coelho dos Santos e Mário Soares estiveram politicamente de acordo. Em 1986, o advogado do Porto apoiou a candidatura de Francisco Salgado Zenha à Presidência da República, numa eleição em que Soares “passou” à segunda volta e acabou por vencer o sufrágio, contra Freitas do Amaral.
Manuel Coelho dos Santos deixou um livro de memórias, que será brevemente editado. 
Deixamos aqui um excerto de uma entrevista que deu em 1986 ao jornalista Manuel Vilas Boas (TSF)
Clique aqui para ouvir entrevista
JCP