quinta-feira, maio 09, 2013

A Biblioclastia entre os muitos aspectos de uma leitura



Amélia Vieira

Minha pupila liberta quem da página é cativo: o branco da
margem certa e da palavra
O negro vivo.

Al-Mu-Tamid



Este maravilhoso poema do Rei do outrora Al-Andaluz encerra toda a delícia do Verbo e sua leitura. O contraste entre estes tempos que delineiam o branco e o negro remete-nos ao papel visual de contempladores enlevados de um grande respeito linguístico. Ele transmite-nos bem a necessidade estética do grafismo na base de uma leitura.

Sabemos como foi longo o processo de metamorfose do Livro e como foi abrupta a sua transformação a partir de Gutenberg. Sabemos o quanto foi engrossando o mercado livresco até ao culminar dos tempos de hoje, numa tal diversidade e quantidade que quase nos faz esquecer o que subjaz ao seu espírito original. Vivemos a grande Fábrica Obsessiva dos espaços de Cultura com leituras obrigatórias, com uma componente maníaca pelas notas, referências, bibliografas, artigos, de tal ordem que pode provocar uma indigestão perante o signo que a própria palavra encerra. Confrontados que somos com esta proliferação sem freio poder-se-ia afirmar paradoxalmente que a Imprensa ao longo do tempo se ocupou de anular a Literatura. Uma legião de Astros e planetas a ela ligados se precipitaram para nos transpor a uma meta-realidade onde a nossa própria vida nela se suspende e penetra.
Forçados que somos à leitura – e tendo cada vez mais a expectativa do espectador – um enxame indefinido de autores proliferam, dando lugar ao que outrora fora um sentido, um caminho, uma missão. Tecnologicamente há que produzir histórias por detrás de outras imaginadas cuja feitura entra na forma da grossa libido da
necessidade de produzir efeitos sempre novos cuja memória suspende. O carácter dialéctico, mais humano e harmonioso, deu lugar a um reino compulsivo que imperou. O texto exegético, quase esquecido, feito exclusivamente por poetas, o texto que integra os tempos no além dos homens das “vozes”. Todo o homem Antigo
antes de escrever, ouviu. E ouviu o quê? Exactamente o que as Vozes, esses signos verbais lhe ditavam.
Neste momento estuda-se a matéria linguística com todos os enunciados de um saber nada regressivo o que faz que todas as matérias estejam vazias por serem outras descentralizadas do meio e dos antigos meios do Texto. Estuda-se de modo académico mas longe se encontram os legados dos fundamentos. A inércia expectante é agora um modelo que cria as suas próprias noções.
Mergulhados que estamos numa insubmissão à memória e sempre com a ideia giratória da novidade, entra-se na esfera compulsiva do louco, numa sucessão que esquece rápido e age sempre.
Todo este espaço mediológico se torna uma rápida e fugaz imagem da linguística que se expressa em todas as línguas, qual Babel, quase pondo fim ao conceito literário.
Remetendo-nos à frase do início do texto façamos um paralelismo entre ela e esta da Idade Média: “Preparava os bois e arava num prado branco, que enchia de brancas linhas, que com negro sémen germinava”. São propósitos e formas verbais muito próximas no seu conceito de divino encerrado na palavra. Por isso a poesia foi
um legado de transformação e desocultação verbal incomparáveis porque ela transportava essa centelha que ajuda a compreender as coisas que a palavra encerra. Não nos será por isso difícil entender que espartilhados por metodologias de pura e anacrónica complexidade ela quase expirasse. Ela precisará sempre de um outro nível de sedução e de uma natureza que não ceda perante o descontínuo barulho de vozes dissonantes.
Os signos, os sinais, as vanguardas descalcificadas da sua impressão dos factos, as imposições livrescas massificadas, o entretenimento como pedagogia e as novas tecnologias abriram um espaço que pode ser neste instante ameaçador.
Lembro que os primeiros livros eram ainda feitos em pele. Talvez voltar a escrever na pele…. Mas em que pele, que superfícies, que virtuais? Estamos num impasse a que bem poderíamos chamar de silêncio com todas as vozes.
Dentro das novas tecnologias e de um novo texto, o livro atingiu o seu zénite e daí descerá numa escuridão difícil de prever. Uma implosão dentro do próprio sistema poderá ser a biblioclastia que inicia de novo a sua margem. Não tenhamos dúvidas que não tardaremos a ver novas “fogueiras” iluminando as noites dos nossos vazios com a luz de uma criação imensa.
Queimar livros, fazer das bibliotecas o grande repasto das chamas foi um vírus no “verbo rígido” da Máquina do Tempo do homem falante. O livro afinal encerrava tudo aquilo que pode e não pode acontecer.
E, depois disto, com que branco, com que margem teceremos para o futuro os nossos ecrãs de leitura, quem são as tintas, quem a resgatará e com que olhos?
Fica a pergunta.
Talvez tenhamos de voltar a Al-Mu-Tamid.

Nota do Editor:
Solicitámos à autora o envio deste bonito texto depois de o vermos publicado no Jornal de Macau, o que agradecemos.