Amélia Vieira
Minha pupila liberta quem da página é cativo: o branco da
margem certa e da palavra
O negro vivo.
Al-Mu-Tamid
Este
maravilhoso poema do Rei do outrora Al-Andaluz encerra toda a delícia do Verbo
e sua leitura. O contraste entre estes tempos que delineiam o branco e o negro
remete-nos ao papel visual de contempladores enlevados de um grande respeito
linguístico. Ele transmite-nos bem a necessidade estética do grafismo na base
de uma leitura.
Sabemos
como foi longo o processo de metamorfose do Livro e como foi abrupta a sua
transformação a partir de Gutenberg. Sabemos o quanto foi engrossando o mercado
livresco até ao culminar dos tempos de hoje, numa tal diversidade e quantidade
que quase nos faz esquecer o que subjaz ao seu espírito original. Vivemos a
grande Fábrica Obsessiva dos espaços de Cultura com leituras obrigatórias, com
uma componente maníaca pelas notas, referências, bibliografas, artigos, de tal
ordem que pode provocar uma indigestão perante o signo que a própria palavra
encerra. Confrontados que somos com esta proliferação sem freio poder-se-ia
afirmar paradoxalmente que a Imprensa ao longo do tempo se ocupou de anular a
Literatura. Uma legião de Astros e planetas a ela ligados se precipitaram para
nos transpor a uma meta-realidade onde a nossa própria vida nela se suspende e
penetra.
Forçados
que somos à leitura – e tendo cada vez mais a expectativa do espectador – um
enxame indefinido de autores proliferam, dando lugar ao que outrora fora um
sentido, um caminho, uma missão. Tecnologicamente há que produzir histórias por
detrás de outras imaginadas cuja feitura entra na forma da grossa libido da
necessidade
de produzir efeitos sempre novos cuja memória suspende. O carácter dialéctico,
mais humano e harmonioso, deu lugar a um reino compulsivo que imperou. O texto
exegético, quase esquecido, feito exclusivamente por poetas, o texto que
integra os tempos no além dos homens das “vozes”. Todo o homem Antigo
antes
de escrever, ouviu. E ouviu o quê? Exactamente o que as Vozes, esses signos
verbais lhe ditavam.
Neste
momento estuda-se a matéria linguística com todos os enunciados de um saber
nada regressivo o que faz que todas as matérias estejam vazias por serem outras
descentralizadas do meio e dos antigos meios do Texto. Estuda-se de modo
académico mas longe se encontram os legados dos fundamentos. A inércia
expectante é agora um modelo que cria as suas próprias noções.
Mergulhados
que estamos numa insubmissão à memória e sempre com a ideia giratória da
novidade, entra-se na esfera compulsiva do louco, numa sucessão que esquece
rápido e age sempre.
Todo
este espaço mediológico se torna uma rápida e fugaz imagem da linguística que
se expressa em todas as línguas, qual Babel, quase pondo fim ao conceito
literário.
Remetendo-nos
à frase do início do texto façamos um paralelismo entre ela e esta da Idade
Média: “Preparava os bois e arava num prado branco, que enchia de brancas
linhas, que com negro sémen germinava”. São propósitos e formas verbais muito
próximas no seu conceito de divino encerrado na palavra. Por isso a poesia foi
um
legado de transformação e desocultação verbal incomparáveis porque ela
transportava essa centelha que ajuda a compreender as coisas que a palavra
encerra. Não nos será por isso difícil entender que espartilhados por
metodologias de pura e anacrónica complexidade ela quase expirasse. Ela
precisará sempre de um outro nível de sedução e de uma natureza que não ceda
perante o descontínuo barulho de vozes dissonantes.
Os
signos, os sinais, as vanguardas descalcificadas da sua impressão dos factos,
as imposições livrescas massificadas, o entretenimento como pedagogia e as
novas tecnologias abriram um espaço que pode ser neste instante ameaçador.
Lembro
que os primeiros livros eram ainda feitos em pele. Talvez voltar a escrever na
pele…. Mas em que pele, que superfícies, que virtuais? Estamos num impasse a
que bem poderíamos chamar de silêncio com todas as vozes.
Dentro
das novas tecnologias e de um novo texto, o livro atingiu o seu zénite e daí
descerá numa escuridão difícil de prever. Uma implosão dentro do próprio
sistema poderá ser a biblioclastia que inicia de novo a sua margem. Não
tenhamos dúvidas que não tardaremos a ver novas “fogueiras” iluminando as
noites dos nossos vazios com a luz de uma criação imensa.
Queimar
livros, fazer das bibliotecas o grande repasto das chamas foi um vírus no
“verbo rígido” da Máquina do Tempo do homem falante. O livro afinal encerrava
tudo aquilo que pode e não pode acontecer.
E,
depois disto, com que branco, com que margem teceremos para o futuro os nossos
ecrãs de leitura, quem são as tintas, quem a resgatará e com que olhos?
Fica
a pergunta.
Talvez tenhamos de voltar a Al-Mu-Tamid.
Nota do Editor:
Solicitámos à autora o envio deste bonito texto depois de o vermos publicado no Jornal de Macau, o que agradecemos.
Nota do Editor:
Solicitámos à autora o envio deste bonito texto depois de o vermos publicado no Jornal de Macau, o que agradecemos.